segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Como é possível sobreviver num campo de concentração?

Ultimato nº 327

Edição 327
Novembro-Dezembro 2010

Os adultos e os jovens de hoje não conhecem a recente história dos horrores do antissemitismo e da Segunda Guerra Mundial. Os que dela participaram como causadores, vítimas ou expectadores, quase todos já morreram. Esse é o motivo da matéria de capa desta edição.



Como é possível acomodar, em cada uma das três camas de tábua de um triliche, nove prisioneiros deitados de lado, um atrás do outro? (Qualquer metrô transporta, no horário de pico, no máximo 9,8 pessoas em pé por metro quadrado.)

Como é possível manter o organismo vivo com 300 gramas de pão e um litro de sopa por dia durante meses a fio?

Como é possível realizar trabalhos braçais ao relento, sem luvas e agasalhos apropriados, se o termômetro marca 20 graus abaixo de zero? Como é possível não explodir de raiva ao ver o capataz com luvas grossas e casaco de couro forrado de peles?

Como é possível ficar mais de trinta meses sem escrever e receber cartas?

Como é possível conviver, em barracos superlotados, com pessoas até então estranhas, de vários países da Europa, com idiomas e comportamentos diferentes e com profissões e níveis diversos? (Certa ocasião havia 1.100 prisioneiros numa cobertura que comportava, no máximo, duzentas pessoas.)

Como é possível suportar “a mais inconcebível falta de higiene” por causa do acúmulo de gente e da ausência ou escassez de vasos sanitários apropriados?

Como é possível continuar vivo apesar da saudade de pessoas, coisas e acontecimentos, dentro de um cercado de arame farpado, com fios de alta tensão, torres de vigia e holofotes acesos a noite inteira?

Como é possível não se desesperar por completo se, do lado de fora, em dois barracões, estão quatro grandes câmaras de gás venenoso e se quase todo o dia se vê a fumaça que sai da chaminé do forno crematório levando consigo as cinzas dos que ontem estavam no mesmo barracão?

Como é possível lidar com a sensação de estar andando atrás de seu próprio cadáver, de ser um cadáver vivo, de ser uma partícula numa massa de carne humana cercada por todos os lados?

Como é possível não ceder à tentação do suicídio, não satisfazer a vontade de “ir para o fio” (agarrar-se à cerca elétrica para morrer)?

Como é possível sujeitar-se à morosidade do tempo se, num campo de concentração, “um dia demora uma semana”?

Como é possível não perder a identidade própria depois de ser despojado de todos os documentos, de todos os bens e até de nome e sobrenome em troca de um mero e comprido número?

Como é possível não perder a autoestima sem ver o próprio rosto no espelho durante dois anos e meio?

O austríaco Viktor Emil Frankl, nascido em Viena cinco anos depois do século 19 e morto na mesma cidade três anos antes do século 21, conseguiu passar por cima de todos esses impossíveis. Antes de ser levado para o campo de concentração de Theresienstadt em setembro de 1942, Frankl, aos 37 anos, já tinha um doutorado em medicina e era um conhecido e respeitado neurologista e psiquiatra. Depois de passar por outros campos de concentração, inclusive Auschwitz, e ser libertado pelo exército americano em abril de 1945, Frankl tornou-se chefe do Departamento de Neurologia do Hospital Policlínico de Viena e doutorou-se em filosofia. Valendo-se de sua própria experiência, fundou a logoterapia, muitas vezes chamada de “terceira escola vienense de psicoterapia” (depois da psicanálise de Freud e da psicologia individual de Adler).

Em seu mais famoso livro (“Em Busca de Sentido”, com mais de 9 milhões de exemplares vendidos), Viktor Frankl explica a razão de sua sobrevivência: “Não há dúvida de que o amor-próprio, quando ancorado em áreas mais profundas, espirituais, não pode ser abalado por uma situação de tremendo sofrimento”.

Foi por isso que ele escreveu também o não menos famoso “A Presença Ignorada de Deus”.

Viktor Emil Frankl -- o salmista do século 20

A psicóloga clínica Izar Aparecida de Moraes Xausa, coordenadora da comissão científico-tecnológica do Serviço Interconfessional de Aconselhamento (SICA), em Porto Alegre, pode estar exagerando ao chamar o psiquiatra Viktor Emil Frankl de “o salmista do século 20”. Porém, ela tem diversas razões, já que há uma coincidência entre a sede de Deus expressa nos Salmos e a redescoberta dessa mesma dependência na experiência, nas abordagens psicológicas e nos livros de Frankl.

Sem constrangimento algum, o salmista confessa sua sede interior de Deus. No Salmo 42 (Como a corça anseia por águas correntes, a minha alma anseia por ti, ó Deus. A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo), no Salmo 63 (Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te busco intensamente; a minha alma tem sede de ti! Todo o meu ser anseia por ti, numa terra seca, exausta e sem água), no salmo 84 (A minha alma anela, e até desfalece, pelos átrios do Senhor; o meu coração e o meu corpo cantam de alegria ao Deus vivo) e no Salmo 143 (Estendo as minhas mãos para ti; como a terra árida, tenho sede de ti).

Viktor Frankl, por sua vez, garante que sobreviveu aos campos de concentração por causa de sua fé pessoal em Deus, que lhe dava e mostrava o sentido da vida. Izar lembra que, “num dos primeiros discursos públicos depois da guerra, Frankl testemunhou o poder sustentador da fé num Deus pessoal e vivo”. Ele poderia parafrasear Davi na situação difícil em que este se encontrava: “Todo o meu ser anseia por ti nesse campo de concentração, sem nome, sem família, sem consultório, sem cartas, sem livros, sem nada”.

Outro comportamento coincidente entre o salmista do século 10 antes de Cristo e o salmista do século 20 depois de Cristo é que ambos olhavam para as alturas. O salmista da Bíblia proclama: “Levanto os meus olhos para os montes e pergunto: De onde me vem o socorro? O meu socorro vem do Senhor, que fez os céus e a terra” (Sl 121.1-2, NVI). Gordon W. Allport, ex-professor de psicologia de Harvard, ousa dizer que, por terem transformado tudo, em especial a psicologia profunda, em “psicologia das alturas”, os estudos de Viktor Frankl deram origem ao “movimento psicológico mais importante de nosso tempo”. Tanto os médicos como os pacientes têm de olhar para os montes, para cima, para as alturas, para Deus, onde encontrarão a chave de tudo: o sentido da vida. Só assim será possível vencer o vazio existencial, que Frankl diz ter sido a neurose do século 20.

Um dos livros escritos por ele chama-se “Der Unbewusste Gott”, que na verdade é sua tese de doutorado em filosofia (1948). Em vez de traduzir como “O Deus Inconsciente”, os tradutores brasileiros Walter O. Schlupp e Helga Reinhold deram ao livro o sugestivo título de “A Presença Ignorada de Deus”. O maior trunfo de Frankl é não se envergonhar de crer na existência de Deus como pessoa e mostrar que essa existência está arraigada no interior de qualquer um, em qualquer lugar e em qualquer tempo. Nesse sentido, mesmo não sendo cristão (era judeu), Frankl foi um pregador de Deus como os profetas do Antigo Testamento. Como psicólogo e psiquiatra, ele mostrava que “além do elemento instintivo, havia o elemento espiritual inconsciente”.

Na logoterapia, fundada por Frankl e geralmente chamada de “a terceira escola vienense de psicoterapia”, “o homem é levado não tanto para fora de uma doença, como em direção a uma verdade” (Izar Aparecida). Na psicanálise, explica ele, “o paciente se deita num divã e conta ao médico coisas que, às vezes, não são muito agradáveis de contar; na logoterapia, no entanto, o paciente pode ficar sentado normalmente, mas precisa ouvir coisas que, às vezes, são muito desagradáveis de se ouvir”. Para Frankl, “o ser humano não é impelido pelo impulso, mas puxado pelos valores”.

Tudo isso se reveste de um valor muito maior se nos lembrarmos que, nas décadas de 1930 e 1940, o ambiente na Alemanha nazista não era nem um pouco favorável ao cristianismo. Hitler dizia que todas as religiões eram semelhantes e que nenhuma delas teria futuro. O alvo oculto do Führer era fazer o que Jesus fez com a figueira infrutífera: “despedaçar as raízes e os ramos do cristianismo”. Não seria necessário abrir guerra contra os cristãos, fossem católicos ou protestantes. Bastava impedir que as igrejas fizessem qualquer coisa diferente do que estavam fazendo, ou seja, perdendo terreno dia-a-dia. Naquele período, um dos mais sombrios da história, Hitler soube substituir a Páscoa e o Natal por festividades nacionais sem teor religioso, e a cruz pela suástica, o emblema nazista. Já que o credo do Cristo judeu ensinava uma “ética efeminada de piedade”, os pais foram desencorajados a mandar seus filhos a qualquer escola religiosa. Para substituir o cristianismo, foi instituído “o culto do Führer, do sangue e do solo”. Em 1937, mais de 100 mil alemães abandonaram formalmente a igreja católica. Uma pequena porcentagem de católicos e protestantes era praticante.

Apesar de ter sido irresponsavelmente chamado de ateu tanto por Freud quanto por um padre durante um ofício religioso na famosa Igreja Votiva de Viena, Frankl era um judeu religioso. Na infância, ele e o irmão mais velho eram obrigados a ler poemas em hebraico ao pôr-do-sol de toda sexta-feira, quando começava o sábado judaico. O exemplo e as palmadas do pai fizeram de Viktor Emil Frankl um daqueles judeus ou não-judeus “tementes a Deus” de que fala o livro de Atos (10.2; 16.14; 18.7). Porém, aquele que é chamado “o salmista do século 20”, “o Copérnico da psicologia”, “o médico do vazio existencial” e “o psicólogo da religião humana” nunca se tornou seguidor ou discípulo de Jesus.

Uma palavra de Viktor Emil Frankl para animar os desalentados

Quando Paulo e Barnabé, em cerca de 46 depois de Cristo, entraram num sábado na sinagoga de Perge, na costa sul da atual Turquia, os responsáveis lhes disseram: “Se vocês têm alguma palavra para animar o povo, podem falar agora” (At 13.15, NTLH). Paulo não perdeu a oportunidade. Ele discursou de tal modo que as pessoas “pediram com insistência que eles voltassem no sábado seguinte a fim de falarem sobre o mesmo assunto” (At 13.12, NTLH).

A seguir, o leitor vai encontrar palavras, não de Paulo, mas de Viktor Frankl, o famoso psiquiatra austríaco que passou quase três anos em campos de concentração (veja Como é possível sobreviver num campo de concentração?)

Sobre a arte de viver
• Não procurem o sucesso. Quanto mais o procurarem e o transformarem num alvo, mais vocês vão errar. Porque o sucesso, como a felicidade, não pode ser perseguido; ele deve acontecer, e só tem lugar como efeito colateral de uma dedicação pessoal a uma causa maior do que a pessoa, ou como subproduto da rendição pessoal a outro ser.
• A vontade de humor -- a tentativa de enxergar as coisas numa perspectiva engraçada -- constitui um truque útil para a arte de viver.
• Com o fim da incerteza chega também a incerteza do fim.
• Quem não consegue mais acreditar no futuro -- seu futuro -- está perdido num campo de concentração.
• O prazer é e deve permanecer efeito colateral ou produto secundário. Ele será anulado e comprometido à medida que se fizer um objetivo em si mesmo.
• O ser humano é um ser finito e sua liberdade é restrita.

Sobre o sentido da vida
• Ouso dizer que nada no mundo contribui tão efetivamente para a sobrevivência, mesmo nas piores condições, como saber que a vida da gente tem um sentido.
• O que o ser humano realmente precisa não é um estado livre de tensões, mas antes a busca e a luta por um objetivo que valha a pena, uma tarefa escolhida livremente. O que ele necessita não é a descarga de tensão a qualquer custo, mas antes o desafio de um sentido em potencial à espera de ser cumprido.
• O sentido de vida difere de pessoa para pessoa, de um dia para o outro, de uma hora para outra. O que importa, por conseguinte, não é o sentido da vida de um modo geral, mas antes o sentido específico da vida de uma pessoa em dado momento.
• O sentimento de falta de sentido cumpre um papel sempre crescente na etiologia da neurose.
• As pessoas têm o suficiente com o que viver, mas não têm nada por que viver; têm os meios, mas não têm o sentido.
• O niilismo não afirma que não existe nada, mas afirma que tudo é desprovido de sentido.

Sobre a arte de sofrer
• Se é que a vida tem sentido, também o sofrimento necessariamente o terá. Afinal de contas, o sofrimento faz parte da vida, de alguma forma, do mesmo modo que o destino e a morte. Aflição e morte fazem parte da existência como um todo.
• Precisamos aprender e também ensinar às pessoas em desespero que a rigor nunca e jamais importa o que nós ainda temos a esperar da vida, mas sim exclusivamente o que a vida espera de nós.
• Deus espera que não o decepcionemos e que saibamos sofrer e morrer, não miseravelmente, mas com orgulho!
• Ninguém tem o direito de praticar injustiça, nem mesmo aquele que sofreu injustiça.
• Quanto mais uma pessoa esquecer-se de si mesma -- dedicando-se a servir uma causa ou amar outra pessoa --, mais humana será e mais se realizará.
• Sofrimento, de certo modo, deixa de ser sofrimento no instante em que se encontra um sentido, como o sentido de um sacrifício.
• O sofrimento desnecessário é masoquismo e não ato heroico.

Sobre o “nem tudo está perdido”
• Se houve um dia na vida em que a liberdade parecia um lindo sonho, virá também o dia em que toda a experiência sofrida no passado parecerá um mero pesadelo.
• O ser humano é capaz de viver e até de morrer por seus ideais e valores.
• O passado ainda pode ser alterado e corrigido.
• Quando já não somos capazes de mudar uma situação, somos desafiados a mudar a nós próprios.
• Quando o paciente está sobre o chão firme da fé religiosa, não se pode objetar ao uso do efeito terapêutico de suas convicções espirituais.
• Uma das principais características da existência humana está na capacidade de se elevar acima das condições biológicas, psicológicas e sociológicas, de crescer para além delas.
• As pessoas decentes formam uma minoria. Mais que isso, sempre serão uma minoria. Justamente por isso, o desafio maior é que nos juntemos à minoria. Porque o mundo está numa situação ruim. E tudo vai piorar mais se cada um de nós não fizer o melhor que puder.

(Todas as frases foram retiradas do best-seller “Em Busca de Sentido”, publicado em alemão em 1945.)

Galeria dos sobreviventes

Jó antes de Habacuque
Jó, o patriarca de Uz, de um dia para o outro, perdeu toda a riqueza (11.500 cabeças de gado) e quase todos os empregados (administradores, agricultores, boiadeiros, carreiros, cortadores de lã, guardas das torres de vigia, plantadores de capim, roçadores de pasto, tiradores de leite, tratadores de animais, vendedores de gado etc.). Perdeu os dez filhos quando a casa onde eles estavam comemorando o aniversário do irmão mais velho desabou e soterrou todos eles. No dia seguinte, havia dez caixões com defuntos para Jó enterrar. Pouco depois da perda dos bens e dos filhos, Jó perdeu a saúde -- o mais precioso bem que alguém pode possuir. A doença era tão desgastante que o levava a desejar ansiosamente a morte. Poderia ser dermatose escamosa, elefantismo, eczema crônico, melanoma ou outra. Ele portava “feridas terríveis, da sola dos pés ao alto da cabeça”, raspava-se com caco de louça e ficou tão desfigurado que seus amigos não o reconheceram e começaram a chorar em alta voz diante daquele quadro aterrador (Jó 2.12-13). O mesmo fazendeiro perdeu a companhia religiosa e o aconchego da esposa, tão enlutada quanto ele. Ela se revoltava contra Deus e queria que o marido fizesse o mesmo (Jó 2.9). A esposa de Jó mantinha-se à distância por questões de saúde: “Minha esposa não chega perto de mim por causa do mau cheiro que sai de minha boca quando falo” (Jó 19.17, BV). O incrível sofredor experimentou ainda a dor da solidão, após a ruína financeira e a nova e feia aparência: “Os meus parentes me abandonaram e os meus amigos esqueceram-se de mim” (Jó 19.14). Como se não bastasse todo esse sofrimento, Jó teve de enfrentar o juízo temerário de todos, especialmente dos amigos mais íntimos, que interpretaram sua desgraça como castigo por algum pecado secreto que ele teria cometido.

Apesar dessa inexplicável e incontida enxurrada de dores e de injustiças, o patriarca de Uz resistiu a tudo por todo o tempo, ancorado numa única pessoa e numa única esperança: “Eu sei que meu Redentor vive, e que no fim se levantará sobre a terra” (Jó 19.25).

Habacuque antes de Paulo
Cerca de 2.500 anos antes da ameaça nazista, os judeus enfrentaram a ameaça babilônica. O grande império de Nabucodonosor estava dominando o mundo. Duas poderosas nações já haviam caído: a Assíria em 612 antes de Cristo, e o Egito, sete anos mais tarde, na famosa batalha de Carquemis (605 a. C.). A próxima nação a ser cercada, destruída e ocupada seria Israel, mais propriamente Judá, o reino do sul. A escassez de comida e a consequente fome eram iminentes. Boa parte da população seria deslocada para longe de sua pátria e muitos sofreriam como escravos e trabalhadores forçados. A beleza de Jerusalém seria coisa do passado. Suas riquezas seriam pilhadas e levadas pelos invasores. Para continuar a viver, os que tinham algum bem o trocariam por comida (Lm 1.1-12). Crianças diriam às mães: “Estou com fome! Estou com sede!”. Sem pão para comer nem água para beber, as crianças cairiam pelas ruas e os bebês morreriam aos poucos nos braços das mães. Estas, por sua vez, por causa da fome, perderiam o controle e devorariam os filhinhos que tanto amavam. Os mortos, tanto jovens como velhos, seriam largados nas ruas (Lm 2.11-21). Os que haviam morrido no campo de batalha seriam considerados mais felizes do que os que morreriam depois, por causa do caos posterior à guerra (Lm 4.9).

Não obstante, frente a essa situação catastrófica prestes a acontecer, um homem chamado Habacuque, que era profeta e poeta, explica como poderia sobreviver: “Ainda que as figueiras não produzam frutas, e as parreiras não deem uvas; ainda que não haja azeitonas para apanhar nem trigo para colher, ainda que não haja mais ovelhas nos campos nem gado nos currais, mesmo assim eu darei graças ao Senhor e louvarei a Deus, o meu Salvador. [Pois] o Senhor é a minha força. Ele torna o meu andar firme como o de uma corça e me leva para as montanhas, onde estarei seguro” (Hc 3.17-19, NTLH).

Paulo antes de Viktor Frankl
Quando Jesus apareceu a Saulo no trevo da cidade de Damasco, capital da Síria, perto do final da primeira metade do século primeiro, ele não escondeu do futuro apóstolo que haveria sofrimento por causa do evangelho (At 9.16). De acordo com o relatório desse sofrimento, contido na Segunda Carta aos Coríntios, escrita em 55 depois de Cristo, Paulo foi apedrejado uma vez, espancado três vezes, chicoteado cinco vezes (cada uma com 39 açoites) e passou por três naufrágios (num deles ficou 24 horas boiando no mar). Além disso, ele muitas vezes ficou sem dormir, sem comer, sem beber, sem se vestir e sem se agasalhar. Experimentou toda sorte de perigos (de morte, de enchentes, de assaltos), nas mãos de conterrâneos, de estrangeiros, de ladrões, de falsos irmãos etc., tanto na cidade como no deserto e em alto-mar. E como se não bastasse, Paulo foi preso várias vezes e passou muito tempo atrás das grades, em Filipos, Jerusalém, Cesareia e principalmente em Roma.

Apesar de todas essas circunstâncias e acontecimentos adversos, o apóstolo sobreviveu sem maiores desgastes físicos ou emocionais. E ele explica o segredo: “Sei o que é estar necessitado e sei também o que é ter mais do que é preciso. Aprendi o segredo de me sentir contente em todo lugar e em qualquer situação, quer esteja alimentado ou com fome, quer tenha muito ou tenha pouco. Com a força que Cristo me dá, posso enfrentar qualquer situação” (Fp 4.12-13).

E hoje?
A sobrevivência é um desafio também para o mundo contemporâneo. Antes do término da Segunda Guerra Mundial, ninguém sabia muito sobre os campos de concentração da Alemanha nazista e sobre o tamanho do holocausto -- nem os próprios alemães. Hoje, não percebemos que também estamos dentro de outros campos de concentração, que tornam a sobrevivência da fé e da moral quase impossível. Quantos mortos o narcotráfico e o crime já deixaram no mundo todo desde o final da Segunda Guerra até hoje? A lei do mais forte prevalece, a cultura da corrupção é uma regra fixa, a determinação de destruir os ramos e raízes da fé cristã continua (seja pela perseguição e morte de cristãos em países islâmicos fechados ou pelos escândalos que os próprios cristãos cometem), a propaganda do “ter” em vez de “ser” é esmagadora, a chamada ao consumismo é praticamente irresistível, a defesa da homossexualidade e da não-durabilidade do casamento é crescente, a pornografia e a violência sexual generalizam-se, e assim por diante. A mídia abraça e divulga todas essas coisas, das tirinhas aos editoriais, das novelas aos noticiários. Certamente, as características, os sintomas e os descaminhos contemporâneos podem ser vistos como um campo de concentração acentuadamente sutil. O excelente vídeo “Qualidade de vida do mundo contemporâneo”, da TV Cultura, do qual participam filósofos e educadores brasileiros, diz que estamos perdendo a capacidade de pensar, estamos perdendo a vitalidade e estamos sendo manipulados e conduzidos pela voz tirânica da prioridade do mercado, pelo ascetismo e pelo individualismo. Tudo isso leva à desgraça do tal vazio existencial, diagnosticado por Viktor Frankl como a neurose do século. Seriam essas coisas mais leves do que aquelas que Jó, Habacuque e Paulo sofreram? A Bíblia fala muito sobre a difícil arte da sobrevivência. Jesus chega a perguntar: “Quando o Filho do Homem vier, será que vai encontrar fé na terra?” (Lc 18.8, NTLH).

O cântico dos sobreviventes


Apesar disso tudo
Eu sei que o meu Redentor vive
E finalmente aparecerá na terra.

Habacuque
Ainda que as figueiras não produzam frutas e as parreiras não deem uvas
Ainda que não haja azeitonas para apanhar nem trigo para colher
Ainda que não haja mais ovelhas nos campos nem gado nos currais
Mesmo assim eu darei graças ao Senhor e louvarei a Deus, o meu Salvador.

Paulo
Aprendi o segredo de me sentir contente em todo lugar e em toda situação
Quer esteja alimentado ou com fome, quer tenha muito, quer tenha pouco.
Com a força que Cristo me dá, posso enfrentar qualquer situação.


Mesmo à distância, fui obrigado a conviver com os horrores do antissemitismo e da Segunda Guerra Mundial

Elben M. Lenz César

Tenho a impressão de que a brutalidade da Segunda Guerra Mundial, ocorrida na primeira metade do século passado, desde a invasão da Polônia (1º de setembro de 1939) até a assinatura do ato formal da rendição do Japão (2 de setembro de 1945), me fizeram algum mal. Durante minha infância e adolescência as notícias da guerra eram diárias. Não chegavam com a rapidez de hoje, mas chegavam. Quem não sabia ou não tinha idade para ler, ouvia a Rádio Mayrink Veiga ou a Rádio Tupi. Quem podia ler, ouvia o rádio e lia os jornais diários. Algumas fotos dramáticas da guerra, que eu via na primeira página do “Correio da Manhã”, que meu pai assinava, até hoje estão arquivadas em minha memória. Porém, houve também o lado “bom” da guerra. Eu e milhares de outras pessoas nos decepcionamos com o super-homem imaginado na mesma Europa, alguns anos antes das duas grandes guerras. Enquanto o sofrimento e a morte causados pelo ódio, pela prepotência e pela violência levavam alguns ao espanto, à descrença, ao desespero, ao suicídio e à liberdade de costumes -- eu fui levado a conhecer a profundidade e a loucura da maldade humana (que prefiro chamar de pecado) e a esperar novos céus e nova terra, não por meio do homem, mas daquele que veio para consertar o que havia sido estragado. Há duas certezas que tenho agasalhado há mais tempo e com mais entusiasmo: uma diz respeito à queda e a outra à redenção. Dois textos bíblicos são esclarecedores e deles sempre me recordo: “Por um só homem entrou o pecado no mundo” (Rm 5.12) e “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29).

A seguir, em ordem cronológica, alguns dos lances mais importantes do antissemitismo e da Segunda Guerra Mundial.

1933
30 de janeiro
Sou uma criança de quase 3 anos. Tenho um sobrenome alemão. Minha avó paterna era filha de alemães. Nesse dia, o austríaco Adolf Hitler, que se dizia alemão, é empossado aos 44 anos como chanceler da Alemanha. O presidente Hindenburg termina seu discurso de posse com estas palavras: “E, agora, senhores, sigamos com Deus”.

1934
2 de agosto
Falece o presidente Paul von Hindenburg, aos 87 anos. Hitler torna-se chefe de Estado. O exército presta juramento de lealdade ao Führer.

1935
15 de setembro
O Reichstag (o parlamento alemão) aprova as leis de Nuremberg, que proíbem o casamento e todas as formas de relacionamento sexual entre judeus e alemães, privam os judeus da cidadania e fazem da suástica o emblema da Alemanha.

1936

17 de junho
Heinrich Himmler torna-se chefe da polícia de toda a Alemanha, inclusive da Gestapo (polícia secreta do Estado). Hitler torna-se responsável apenas perante si mesmo e mais ninguém, podendo remover qualquer limitação ao seu poder, dentro ou fora da lei. Sou apenas um menino de 6 anos.

1937

13 de dezembro
Tenho quase 8 anos. Meu pai é pastor das igrejas presbiterianas de Campos e Itaperuna, no norte fluminense, e comemora 36 anos. Nesse mesmo dia, tropas japonesas comandadas pelo general Iwane Matsui cometem atrocidades na China. Matam soldados e civis e estupram mulheres. Estima-se que cerca de 20 a 40 mil mulheres tenham sido violentadas, crianças e idosas. Houve fuzilamentos, decapitações e crucificações. Civis eram enterrados vivos ou pendurados pela língua. Bebês eram jogados ao ar e perfurados à baioneta.

1938
30 de outubro
Curso a primeira série do primário. Na escola dominical, sou transferido do primário para o intermediário. Orson Welles transmite pelo rádio uma adaptação do romance “A Guerra dos Mundos”, de H. G. Wells, passando a real impressão de que o planeta estava sendo invadido por extraterrestres.

9 de novembro
Membros de organizações nazistas armados de machados e marretas destroem 29 lojas de departamentos e residências judaicas, na Alemanha e na Áustria. Sinagogas e cemitérios judeus são profanados. Mais de 30 mil judeus são enviados para os campos de concentração.

1939
3 de agosto
Físicos húngaros e o cientista alemão Albert Einstein, de 60 anos, alertam o presidente americano Franklin D. Roosevelt de que as pesquisas com energia nuclear realizadas na Alemanha poderiam levar os nazistas à construção de uma bomba nuclear. Einstein pergunta: “Devemos dar fim à raça humana ou a humanidade deve renunciar à guerra?”. Eu ainda não completei 10 anos.

3 de setembro
Inglaterra e França declaram guerra à Alemanha. Dois dias antes, a Alemanha havia invadido a Polônia.

1940
10 de maio
A Alemanha invade a Holanda e a Bélgica.

14 de junho
A Alemanha toma Paris.

26 de setembro
O filósofo Walter Benjamin, nascido em Berlim no seio de uma família judaica, comete suicídio aos 48 anos. Ele tentava, junto com outros refugiados, atravessar a fronteira entre França e Espanha para escapar dos nazistas que haviam ocupado Paris três meses antes. Benjamin era doutor em filosofia e crítico de ideias e fatos. Deixou três livros e vários ensaios publicados em diversos periódicos.

29 de dezembro
Em um domingo entre o Natal e o Ano-Novo, a Alemanha, em três horas de fogo e terror, despeja 120 toneladas de explosivos de alta potência e 22 mil bombas incendiárias no centro de Londres. Oito igrejas são destruídas.

1941
7 de dezembro
Torpedeiros e bombardeiros japoneses conseguem destruir ou danificar oito encouraçados, três cruzadores e três “destroyers” americanos que estavam em Pearl Habor. O ataque aéreo e naval durou apenas uma hora e meia e destruiu 188 aeronaves dos Estados Unidos, além de avariar outras 155. Os japoneses perderam só 29 aeronaves e cinco minissubmarinos. Morreram 1187 pessoas da marinha americana.

1942

20 de janeiro
Na escola dominical, sou transferido do departamento intermediário para o secundário. Reinhard Heydrich, chefe dos serviços de segurança do Terceiro Reich, reforça o enrijecimento das medidas antissemitas e explica que, por conta da guerra e da escassez de recursos, os 11 milhões de judeus que ainda estavam na Europa não poderiam permanecer no continente nem emigrar. A solução final para o problema seria o assassinato em massa. Os judeus já haviam sido excluídos de todos os cargos públicos (o que significava a perda de direitos de pensão), das profissões (inclusive do magistério, da medicina e do direito), dos esportes e das artes. Cartazes com os dizeres “não queremos judeus aqui” já haviam sido afixados em estâncias de férias, restaurantes e hotéis. Qualquer nazista podia espancar, expulsar ou roubar um judeu impunemente.

23 de fevereiro
Faltam dois meses para eu completar 12 anos. Começo a fazer o “ginásio” no Colégio Batista Fluminense. As rádios e os jornais anunciam o suicídio do casal Elizabeth e Stefan Zweig, acontecido no dia anterior em Petrópolis, RJ. Zweig, de 60 anos, um judeu nascido em Viena, era famoso no mundo inteiro por seus romances (“Amok”, “A Confusão dos Sentimentos”) e biografias (“Maria Antonieta”, “Erasmo de Rotterdan”). Forçado pelos nazistas a deixar a Áustria, veio parar no Brasil em agosto de 1936. Não resistiu à depressão causada pelos problemas mundiais e matou-se. “Em boa hora e conduta ereta, achei melhor concluir uma vida na qual o labor intelectual foi a mais pura alegria e a liberdade pessoal o mais precioso bem sobre a terra. Saúdo a todos os meus amigos. Que lhes seja dado ver a aurora desta longa noite. Eu, demasiadamente impaciente, vou me antes” (última frase da “declaração” deixada no leito de morte).

6 de junho
Seis meses depois de Pearl Harbor, trava-se a batalha naval de Midway, nas proximidades do Havaí. Os japoneses perdem os quatro porta-aviões e mais de duzentas aeronaves, juntamente com suas tripulações. Os americanos perdem apenas um porta-aviões.

15 de agosto
O submarino alemão U-507 afunda o navio brasileiro “Baependy” no litoral da Bahia, matando 270 das 306 pessoas que estavam a bordo. Entre os mortos há 142 militares brasileiros (um major, três capitães, cinco tenentes, oito sargentos e 125 cabos e soldados). O navio afundou em dois minutos. Dias antes, o mesmo submarino já havia posto a pique cinco navios brasileiros. Incluindo os 270 mortos do “Baependy”, o número de vítimas fatais chega a 607. Desde janeiro de 1941, o Brasil tinha rompido as relações diplomáticas com o Eixo.

1944
6 de junho
Exatamente dois anos depois de Midway, os aliados têm outra vitória decisiva. Ao cair da noite desse dia, 125 mil soldados americanos, ingleses e canadenses, sob o comando do general Dwight Eisenhower, já haviam desembarcado ao longo dos 105 quilômetros da Normandia, na França, até então dominada pelos alemães. Foi o chamado Dia D. Começa o colapso do Terceiro Reich.

4 de agosto
Exatamente um mês depois de minha pública profissão de fé na Igreja Presbiteriana de Campos, aos 14 anos, a menina judia-alemã Anne Frank, apenas um ano mais velha, é localizada no sótão secreto de um prédio comercial de Amsterdã e levada com outros sete judeus para o campo de concentração em Bergen Belsen. Ela não pôde levar consigo o diário escrito desde junho de 1942.

1945
27 de janeiro
Estamos de férias na praia de Grussaí. Tomo conhecimento de que tropas soviéticas invadem um complexo de campos de concentração nos arredores de Oswiecim, na Polônia, e do que os nazistas faziam com os judeus. O major Anatoly Shapiro, que comandou a operação, teria dito: “Eu vi os rostos das pessoas que libertamos; elas passaram pelo inferno”.

14 de fevereiro
Aviões da Força Aérea Inglesa (RAF) bombardeiam Dresden, na Alemanha, e 33 quilômetros quadrados da cidade são destruídos pelo incêndio causado por uma mistura de explosivos capaz de se perpetuar sozinha. Mais de 25 mil pessoas morrem.

9 de abril
Preso desde 1943 por ajudar a introduzir clandestinamente quatorze judeus na Suíça, o pastor luterano alemão Dietrich Bonhoeffer, de apenas 39 anos, é enforcado sob a acusação de alta traição. Ex-aluno de Karl Barth, Bonhoeffer obteve o doutorado em teologia na Universidade de Berlim aos 21 anos. Ele foi um dos organizadores da chamada Igreja Confessante, que reunia cerca de um terço do clero protestante em oposição a Hitler. Por dois anos, Bonhoeffer dirigiu o seminário dessa igreja, fechado em 1937 por ordem do governo.

27 de abril
O exército americano liberta os prisioneiros dos campos de concentração de Dachau. Entre eles estava o psiquiatra vienense Viktor Emil Frankl, de 40 anos.

30 de abril
Uma semana depois de comemorar meu 15º aniversário, Adolf Hitler, aos 56 anos, e Eva Braun, 23 anos mais nova e com quem ele havia se casado na véspera, cometem suicídio depois de almoçar com seu nutricionista e seus secretários. Ela se envenenou e ele deu um tiro na boca.

7 de maio
O coronel-general Alfred Jodl, do alto comando alemão, assina os termos de rendição incondicional da Alemanha no quartel general dos Aliados, situado em uma escola em Reims, na França. Após cinco anos, oito meses e sete dias, está encerrada a fase europeia da Segunda Guerra Mundial.

6 de agosto
A Enola Gay, uma fortaleza voadora americana, lança sobre a cidade japonesa de Hiroshima o “Little Boy” -- a primeira bomba nuclear do mundo. O artefato causou destruição em um raio de 1,6 quilômetro quadrado, além de arruinar e incendiar outros 11 quilômetros quadrados circundantes. Dos 255 mil habitantes, 70 mil morreram após a explosão.

2 de setembro
A bordo de um navio americano, o governo e o alto comando militar japonês assinam o ato formal de rendição às tropas aliadas. Encerra-se a fase asiática da Segunda Guerra Mundial. Sou um adolescente. Começo a estudar clarineta para tocar na pequena orquestra da igreja presbiteriana. Publico no “Jornal Mocidade” meu primeiro artigo e no jornal “O Puritano”, minha primeira oração escrita. Inicio namoro com uma das moças que professaram a fé comigo.

Fontes:
• “1001 Dias que Abalaram o Mundo”. Rio de Janeiro: Sextante, 2009.
• “História do Século 20”, vol. 4. São Paulo: Abril Cultural, 1970.
• “Morte no Paraíso”; a Tragédia de Stefan Zweig. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
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